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Além desses fatores, observa-se também a fragmentação entre os dispositivos de formação e os serviços de saúde. A ausência de uma integração sistemática entre as políticas de educação e de saúde dificulta a incorporação da lógica da Educação Permanente no cotidiano das equipes. Em muitos cenários, os estudantes enfrentam resistência das gestões locais, que nem sempre reconhecem a legitimidade dos processos formativos. | Além desses fatores, observa-se também a fragmentação entre os dispositivos de formação e os serviços de saúde. A ausência de uma integração sistemática entre as políticas de educação e de saúde dificulta a incorporação da lógica da Educação Permanente no cotidiano das equipes. Em muitos cenários, os estudantes enfrentam resistência das gestões locais, que nem sempre reconhecem a legitimidade dos processos formativos. | ||
| − | Outro aspecto relevante é o desafio da autonomia do | + | Outro aspecto relevante é o desafio da autonomia do profissional-estudante. Muitos profissionais ingressam na pós-graduação com lacunas formativas acumuladas desde a graduação, o que exige um esforço adicional para ressignificar conteúdos, sobretudo em áreas como saúde coletiva, humanidades médicas e abordagem individual e familiar. |
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| + | Por fim, é importante considerar os aspectos emocionais e subjetivos do processo formativo. A insegurança profissional, o sentimento de solidão nas areas de trabalho, a tensão entre o ideal de cuidado e as condições reais de trabalho, entre outros fatores, impactam diretamente na motivação e na capacidade de aprendizagem dos estudantes. A escuta ativa por parte dos tutores e o fortalecimento de redes de apoio entre pares têm se mostrado estratégias fundamentais para lidar com esses desafios. | ||
Superar esses obstáculos exige investimento institucional em estrutura pedagógica, valorização do trabalho como espaço educativo e compromisso com uma epistemologia crítica da prática. | Superar esses obstáculos exige investimento institucional em estrutura pedagógica, valorização do trabalho como espaço educativo e compromisso com uma epistemologia crítica da prática. | ||
Título: Interfaces entre Prática e Formação: Desempenho Profissional e Aquisição de Conhecimento na Pós-Graduação em Medicina de Família e Comunidade - Experiência como tutor. SP - Brasil
Autor: Dr Vicente Leonides Prado Junco Especialista em Medicina de Família e Comunidade Tutor na pós-graduação em Medicina de Família e Comunidade - UNASUS-Unifesp
Este artigo analisa criticamente a relação entre o desempenho profissional e a aquisição de conhecimento de estudantes da pós-graduação em Medicina de Família e Comunidade (MFC). A partir de uma revisão integrativa da literatura, associada a fundamentos teóricos da educação em saúde, discute-se como o contexto da prática assistencial na Atenção Primária à Saúde (APS) influencia os processos formativos. Destacam-se os desafios enfrentados, os dispositivos pedagógicos adotados e as implicações para a qualificação da força de trabalho em saúde. A experiência como tutor da pós-graduação da UNASUS/Unifesp permitiu observar que a motivação, o vínculo com o território e o tempo de atuação influenciam diretamente na qualidade do desempenho do aluno.
A consolidação da Estratégia Saúde da Família (ESF) como modelo prioritário de atenção à saúde no Brasil exigiu a formação de profissionais com competências específicas em Medicina de Família e Comunidade. A pós-graduação lato sensu, muitas vezes associada a políticas de provimento como o Mais Médicos e o Médicos pelo Brasil, tem sido o principal mecanismo para essa qualificação (Paim et al., 2011; Brasil, 2020). A formação desses profissionais ocorre simultaneamente à atuação clínica, o que exige metodologias que articulem teoria e prática, com foco em desenvolvimento crítico e competências situadas. Essa dualidade – ser profissional e estudante – lança desafios tanto pedagógicos quanto organizacionais (Feuerwerker & Cecim, 2021).
A aprendizagem dos profissionais em Medicina de Família e Comunidade (MFC) se dá, prioritariamente, em contextos reais de atuação, nos quais o trabalho e a formação se entrelaçam de forma indissociável. Essa perspectiva se alinha à noção de formação em serviço, que compreende o cotidiano da prática assistencial como espaço legítimo de produção de conhecimento e de subjetividades profissionais.
Schön (1992) introduz o conceito de reflexão-na-ação, segundo o qual o profissional aprende enquanto age, reinterpretando suas experiências e reconstruindo saberes em tempo real. Tal abordagem valoriza a dimensão prática da aprendizagem e o desenvolvimento da capacidade crítica frente à complexidade das situações enfrentadas.
A pedagogia crítica de Freire (1987) acrescenta a esse processo a centralidade da realidade vivida como ponto de partida da aprendizagem. A valorização do contexto, do território e dos saberes populares promove uma educação problematizadora, na qual os sujeitos tornam-se protagonistas da transformação social e profissional.
Na saúde, essa perspectiva é incorporada pela Educação Permanente em Saúde (EPS), diretriz nacional que compreende o trabalho como espaço pedagógico e defende que "se trabalha e se aprende no mesmo movimento" (Ceccim & Feuerwerker, 2004). A EPS propõe metodologias que partem dos desafios cotidianos para promover a construção coletiva do conhecimento, articulando ensino, atenção, gestão e controle social.
A teoria da aprendizagem significativa, de Ausubel (2003), contribui ao enfatizar que a incorporação de novos conhecimentos depende de sua articulação com estruturas cognitivas pré-existentes. Essa conexão é intensificada em ambientes desafiadores como a Atenção Primária à Saúde (APS), nos quais o profissional é constantemente estimulado a revisar e ressignificar seus saberes.
Outras abordagens contemporâneas também oferecem contribuições relevantes. Boud (1985) destaca a aprendizagem experiencial como um processo ativo e reflexivo que emerge da própria vivência, sendo fundamental para o desenvolvimento de competências em contextos complexos. Já Wenger (1998) propõe a noção de comunidades de prática, nas quais a aprendizagem ocorre pela participação em coletivos que compartilham propósitos, repertórios e práticas comuns. No âmbito da pós-graduação em MFC, dispositivos como a tutoria, os fóruns clínicos e os projetos terapêuticos singulares constituem exemplos concretos dessas comunidades formativas.
Por fim, Merhy (2002) contribui ao propor a ideia do trabalho vivo em ato, compreendido como uma produção que envolve invenção, subjetividade e criatividade no cotidiano dos serviços. Tal concepção amplia a visão de formação ao incorporar aspectos éticos, políticos e afetivos que atravessam o cuidado e que devem ser considerados nos processos educativos.
Dessa forma, a formação em serviço na MFC demanda uma concepção ampliada de aprendizagem, pautada na integração entre teoria e prática, no diálogo entre saberes e na valorização da experiência como fonte legítima de conhecimento. É nesse entrelaçamento que se constituem profissionais críticos, reflexivos e comprometidos com a transformação da realidade em saúde.
O desempenho dos estudantes de pós-graduação em MFC deve ser avaliado com base na aquisição de competências clínicas, comunicacionais, éticas e de gestão, conforme descrito nas Diretrizes da SBMFC (2020) e nas políticas de EPS (Brasil, 2009). Isso inclui:
1. A capacidade de tomada de decisão clínica com base em evidências e contexto;
2. Habilidades de escuta qualificada e construção de vínculo;
3. Atuação integrada à equipe e gestão do cuidado.
Para além de listas de habilidades, a avaliação por competências requer instrumentos formativos que permitam acompanhar o desenvolvimento do estudante ao longo do tempo, com feedbacks contínuos e contextualizados. A aprendizagem não deve ser vista como um acúmulo de conteúdos, mas como uma transformação na forma de pensar, agir e sentir no cuidado em saúde.
A utilização de portfólios reflexivos, rodas de supervisão clínica e narrativas de prática tem se mostrado eficaz na avaliação qualitativa do desempenho. Esses instrumentos favorecem a metacognição e permitem que o estudante reconheça seus avanços e fragilidades.
A observação direta do trabalho também é fundamental. Sempre que possível, o tutor deve considerar relatos de preceptores locais, devolutivas das equipes e até mesmo percepções dos usuários. Essa triangulação de olhares amplia a compreensão do desempenho e assegura um julgamento mais justo e contextualizado.
Cabe destacar ainda que o desempenho deve ser analisado considerando as condições objetivas de trabalho. A precarização de vínculos, a rotatividade de equipes e a limitação de recursos impactam diretamente nas possibilidades de ação do profissional. Portanto, a avaliação deve ser compreensiva e voltada à melhoria contínua, e não punitiva ou desmotivadora.
Estudos apontam que o acompanhamento por tutores, a análise crítica de casos reais e a construção de projetos terapêuticos são estratégias eficazes para promover essas competências (Gomes et al., 2019).
Apesar das potencialidades da formação em serviço, diversos desafios dificultam a consolidação de processos formativos sólidos. Entre eles:
1. A sobrecarga de trabalho e ausência de tempo protegido para estudo (Giffin & Freitas, 2022);
2. A escassez de preceptores com formação pedagógica adequada (Trad et al., 2013);
3. A permanência de uma cultura biomédica hegemônica, que muitas vezes desvaloriza saberes relacionais e territoriais (Merhy, 2002).
Além desses fatores, observa-se também a fragmentação entre os dispositivos de formação e os serviços de saúde. A ausência de uma integração sistemática entre as políticas de educação e de saúde dificulta a incorporação da lógica da Educação Permanente no cotidiano das equipes. Em muitos cenários, os estudantes enfrentam resistência das gestões locais, que nem sempre reconhecem a legitimidade dos processos formativos.
Outro aspecto relevante é o desafio da autonomia do profissional-estudante. Muitos profissionais ingressam na pós-graduação com lacunas formativas acumuladas desde a graduação, o que exige um esforço adicional para ressignificar conteúdos, sobretudo em áreas como saúde coletiva, humanidades médicas e abordagem individual e familiar.
Por fim, é importante considerar os aspectos emocionais e subjetivos do processo formativo. A insegurança profissional, o sentimento de solidão nas areas de trabalho, a tensão entre o ideal de cuidado e as condições reais de trabalho, entre outros fatores, impactam diretamente na motivação e na capacidade de aprendizagem dos estudantes. A escuta ativa por parte dos tutores e o fortalecimento de redes de apoio entre pares têm se mostrado estratégias fundamentais para lidar com esses desafios.
Superar esses obstáculos exige investimento institucional em estrutura pedagógica, valorização do trabalho como espaço educativo e compromisso com uma epistemologia crítica da prática.
A pós-graduação em MFC representa uma oportunidade estratégica para qualificar a APS, desde que estruturada em metodologias que valorizem a experiência profissional como fonte de conhecimento. A articulação entre desempenho clínico e aprendizagem reflexiva é essencial para formar profissionais capazes de lidar com a complexidade da vida real, construindo cuidado com base no território, no vínculo e na autonomia dos sujeitos.
AUSUBEL, D. P. Aquisição e retenção de conhecimentos: uma perspectiva cognitiva. Lisboa: Plátano, 2003.
BOUD, D. Reflection: Turning experience into learning. London: Kogan Page, 1985. BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. Brasília: MS, 2009.
BRASIL. Ministério da Saúde. Programa Médicos pelo Brasil: bases legais e diretrizes. Brasília: MS, 2020. CECCIM, R. B.; FEUERWERKER, L. C. M. O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis, v. 14, n. 1, p. 41–65, 2004.
FEUERWERKER, L. C. M.; CECIM, R. B. Formação em Saúde: significados e práticas em transformação. In: LIMA, J. C.; PINTO, H. A. Educação Permanente em Saúde: teoria e prática. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2021.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. GIFFIN, K.; FREITAS, M. R. Educação e saúde: desafios contemporâneos da formação em serviço. Interface, v. 26, e220020, 2022.
GOMES, M. P. et al. Competências na atenção primária à saúde: percepções de egressos de residência médica em MFC. Revista Brasileira de Educação Médica, v. 43, n. 2, p. 20–27, 2019.
MERHY, E. E. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. São Paulo: Hucitec, 2002. PAIM, J. et al. O sistema de saúde brasileiro: história, avanços e desafios. The Lancet, v. 377, p. 1778–1797, 2011.
SCHÖN, D. A. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 1992.
SBMFC – Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. Diretrizes Curriculares da Residência em MFC. Brasília: SBMFC, 2020. TRAD, L. A. B. et al. Formação em saúde e o desafio da integralidade: um estudo com estudantes da graduação e da residência em MFC. Ciência & Saúde Coletiva, v. 18, n. 6, p. 1755–1764, 2013.
WENGER, E. Communities of practice: learning, meaning, and identity. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
Published on 03/05/25
Submitted on 26/04/25
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